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O que é a Lei de Segurança Nacional, usada pelo STF para prender Daniel Silveira?

Derick Fernandes - Jornalista
Ministro do STF Alexandre de Moraes evocou a lei contra o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) - Foto: Marcelo Jr. Casal / ABr

A prisão do deputado bolsonarista Daniel Silveira, com base na Lei de Segurança Nacional (LSN), de 1983, reacendeu um debate político que desde 2020 vem ganhando força. A necessidade e a aplicabilidade da lei, que desde a redemocratização, foi muito pouco usada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

A LSN voltou a ser holofote nos últimos tempos – especialmente em 2020. Ela tem sido evocada por diversos lados do espectro político para enquadrar desde grupos de extrema-direita que pediam a volta da ditadura militar, até um cartunista que desenhou uma charge crítica ao presidente Jair Bolsonaro.

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Em junho do ano passado, o governo ameaçou aplicar a lei em servidores que divulgassem informações discutidas no Ministério da Saúde, comandado interinamente pelo general Eduardo Pazuello, que mais tarde se tornou ministro definitivo. Na ocasião, os servidores foram obrigados a assinar um termo de sigilo, que dizia que qualquer vazamento poderia ser enquadrado na LSN.

Na gestão Bolsonaro, foi a segunda vez que o governo falou em Lei de Segurança Nacional. Em outra ocasião, o então advogado-geral da União, André Mendonça, havia dito que pediria uma investigação contra o cartunista Aroeira com base na LSN, por uma charge crítica a Bolsonaro. No desenho, o presidente aparecia pintando uma suástica nazista sobe um símbolo de pronto-socorro – uma crítica ao incentivo de Bolsonaro para que pessoas invadissem os hospitais para filmar leitos “supostamente vazios”. Um manifesto em apoio ao cartunista fez com que vários outros cartunistas repetissem o desenho.

Mas como mencionado no início do texto, não é só o governo que se prevalece da lei. Apoiadores do presidente também correm o risco de serem processados criminalmente com base na mesma legislação. A ativista Sara Giromini – conhecida como Sara Winter – foi presa junto com cinco pessoas do grupo denominado “300 de Brasília”. Eles admitiram carregar armas em acampamento bolsonarista.

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Em abril de 2020, o STF autorizou a abertura de inquérito para apurar possível violação da LSN em atos favoráveis ao presidente. Nos protestos, os manifestantes pediam o fim do STF e a volta do AI-5, ato que endureceu a ditadura e autorizou uma série de medidas de exceção, permitindo o fechamento do Congresso, intervenções do Governo Federal nos Estados, e prisões consideradas ilegais, além da suspensão de direitos políticos de cidadãos sem necessidade de justificativa.

Sara Winter foi alvo da LSN em 2020 – Foto: Arquivo

Mas enfim, o que diz a Lei da Segurança Nacional, usada pelo ministro Alexandre de Moraes como base para determinar a prisão do deputado bolsonarista Daniel Silveira?

ENTULHO DA DITADURA

A LSN em vigor atualmente foi criada em 1983, período de reabertura da ditadura militar, e é a mais recente versão de uma série de legislações sobre a segurança interna do país.

A legislação estabelece como crime atividades que colocam a perigo a “integridade territorial e a soberania nacional”, “o regime representativo democrático”, “a Federação e o Estado de Direito e a pessoa dos chefes dos Poderes da União”.

“O Brasil teve várias Leis de Segurança Nacional, em vários momentos históricos, nunca em momentos muito bons”, diz o criminalista Davi Tangerino, professor de direito da Fundação Getúlio Vargas.

Segundo Gustavo Badaró, professor de direito criminal da USP (Universidade de São Paulo), a LSN e o conceito de “segurança nacional” foram usados durante o período militar para perseguir opositores do regime

“As leis de segurança nacional atribuíam à Justiça Militar a competência para julgar certos crimes, então civis contrários ao regime passaram a ser perseguidos e processados militarmente. O conceito de segurança nacional ficou bem marcado por esse cunho de perseguição na época da ditadura”, diz Badaró.

Segundo o jurista, isso explica por que, durante a maior parte dos mais de 30 anos desde a redemocratização, a LSN foi usada muito pontualmente.

Jurista Gustavo Badaró – Foto: Reprodução

“Ela nunca recebeu muita atenção pelo contexto. Politicamente ficou um conceito desgastado. A nova Constituição, de 1988, não reproduz esse termo, embora mantenha a preocupação com a segurança do país”, explica Badaró.

“A Constituição diz que considera graves crimes contra o Estado Democrático de Direito e que ação de grupos armados contra a ordem democrática é um crime inafiançável”, afirma.

Nas poucas vezes que a lei foi usada desde o fim da ditadura, como contra invasões do MST (Movimento dos Sem Terra) em 2000 e contra manifestantes em 2012 e 2013, seu uso sempre foi muito discutido e criticado.

Em 2002, o houve polêmica na aplicação da lei contra o MST. Na época o Brasil era governo pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, que criou uma comissão com juristas para substituir a LSN e incluir no Código Penal os “crimes contra Estado democrático de Direito”. Enquanto isso, a Câmara discutia a revogação da lei herdada da ditadura. Porém, o projeto do governo não foi pra frente, e a revogação da LSN acabou nunca acontecendo por parte do Congresso.

Na história mais recente, a lei foi usada em 2018 para enquadrar Adélio Bispo, que deu uma facada no então candidato à presidência Jair Bolsonaro. Na época, o uso da LSN também incitou discussões sobre seu histórico.

DEMOCRACIA AMEAÇADA?

Mas depois de anos sendo usada pontualmente, o que levou o retorno da LSN em 2020 e em 2021?

Quem explicou é o constitucionalista Wallace Corbo, professor de direito da FGV-Rio. Segundo ele, em 2020 o Brasil estava em um ano de “crise democrática constitucional”.

“Crise não significa que está acabando, significa que é um ponto de inflexão profunda, em que as pessoas se veem na posição de pensar o que elas acham sobre o nosso sistema”, diz Corbo.

Em todo momento de crise democrática, diz Corbo, surgem dois caminhos possíveis: o da tentativa de ruptura, ou seja, golpe, como sugeriam os manifestantantes em favor da volta do AI-5, ou o caminho da tentativa de retomada.

Segundo Corbo, nesse contexto a LSN — que tem conceitos bem amplos — acaba sendo evocada por defensores de ambos os caminhos. Por um lado, diz ele, tem instrumentos que de fato podem ajudar a proteger a democracia. Por outro, diz, se servir para simples perseguição de opositores políticos, acaba minando os próprios princípios democráticos, como a liberdade de expressão.

“Então eu acho que o ressurgimento da LSN como esse instrumento amplo, que serve tanto para subversão quanto para a proteção do sistema. Então ela acaba estando vinculada a esses dois caminhos possíveis”, afirma Corbo.

Do lado da proteção, da retomada do projeto constitucional, está esse uso contra esses movimentos de fake news, esses movimentos armados que pedem fechamento do STF, e do outro, do lado da ruptura, está essa tentativa do governo de negar princípios constitucionais”, diz o professor de direito constitucional.

Deputado Daniel Silveira, preso pela PF na noite desta terça (16) no Rio – Foto: Divulgação

Para Gustavo Badaró, o retorno é mais uma questão política do que jurídica, ligada em parte à conexão do governo Bolsonaro com militares.

Em outros governos, essa ligação com a ditadura militar era um freio para o uso da lei”, afirma. “Mas o presidente é militar, não é curioso que um governo militar queira usar essa lei que ficou muito ligada com o regime.”

Badaró diz que vê com preocupação o uso da lei mesmo nos inquéritos abertos com autorização do STF para investigar manifestantes de extrema-direita que pediram fechamento do Congresso ou os integrantes do grupo ‘300’.

“É muito perigoso pelo histórico de como a lei foi utilizada você voltar a usá-la justamente em um momento em que a democracia está em crise”, diz o jurista.

“De o fato o grupo propõe golpe, mas a não ser que você tenha um grupo de militares que se aquartelaram e vão com tanques invadir o STF, e esteja de fato colocando em risco a democracia, me parece um exagero (usar a LSN)”, diz Badaró. “Por que amanhã pode contra ser jornalistas, ou quaisquer opositores políticos. Já temos na legislação comum crimes que são suficientes para coibir essas situações, crimes contra a honra, crimes de ameaça.”

Para Davi Tangerino, o uso da lei contra manifestantes contrários à democracia é justificável, mas ao ameaçar processar um cartunista e servidores de saúde, o governo “faz uma confusão” entre o que é assunto de Estado e o que é questão de segurança nacional.

“É característica dos governos autoritários tratar todos os assuntos como sendo de segurança nacional — não é porque é um assunto de Estado, como as informações do ministério da Saúde, que é questão de segurança nacional”, diz Tangerino. “Políticas públicas são por regra auditáveis, é preciso haver um controles, a máquina pública é para se controlada pelo o povo.”

LEI DE SEGURANÇA NACIONAL: ULTRAPASSADA

Por ser anterior à Constituição de 1988, explica Wallace Corbo, nem tudo o que está nela continua válido.

“A lógica é que a Constituição recepciona as leis anteriores, e o STF decide o que é compatível e o que não é”, explica. “A Lei de Imprensa (que permitia a censura, por exemplo), foi revogada.”

Mas nem todas as leis são totalmente compatíveis ou totalmente incompatíveis – é o caso da LSN.

“A lei é um resquício de um período autoritário e precisa passar por uma filtragem constitucional”, explica Corbo, o que pode acontecer através de um processo que questione a própria lei ou através de julgamentos em casos concretos.

O constitucionalista afirma que uma lei que trate da defesa do regime democrático é muito necessária e que os primeiros 12 artigos da lei — que criminalizam, por exemplo, ataques à instituições com uso de força paramilitar — podem ser úteis na defesa da democracia.

Grupo 300 do Brasil, liderado por Sara Winter, e investigado por atos antidemocráticos – Foto: Arquivo

“Todo regime democrático precisa ter instrumentos para se proteger de golpes, instrumentos para proteger esse sistema”, diz Corbo. “Nos anos antes do nazismo na Alemanha, o constitucionalista Karl Loewenstein dizia: ‘ ou a gente usa nossas leis de segurança para nos protegermos contra o nazismo, ou vamos ter problemas’.”No entanto, diz Corbo, os últimos artigos da LSN não servem a esse propósito e começam a entrar numa seara que gera um potencial problema – como quando trata como questão de segurança críticas feitas ao presidente da República.

“Isso viola totalmente o princípio de liberdade de expressão guardado pela Constituição. Democracia significa ter possibilidade fazer oposição”, diz Corbo.

Davi Tangerino diz que o exemplo do uso da lei contra a charge de um cartunista é uma forma de aplicá-la ferindo a Constituição, por se tratar de uma manifestação artística – ou seja, um mero desenho. Tal como Aroeira com sua charge anti-Bolsonaro, o deputado Daniel Silveira também foi enquadrado no mesmo artigo – usado antes pelo governo. O artigo 26 da lei estabelece como crime caluniar ou difamar o Presidente da República, o Senado, a Câmara dos Deputados, ou o STF.

“A arte e a crítica política não são calúnia nem difamação. E mesmo que fosse um desses crimes contra o presidente, não é uma questão de segurança nacional”, afirma Tangerino. Já no caso de Daniel Silveira, existiram elementos – como ofensas graves – no vídeo divulgado por ele.

No vídeo, Silveira afirma que os onze ministros do Supremo “não servem pra porra nenhuma pra esse país”, “não têm caráter, nem escrúpulo nem moral” e deveriam ser destituídos para a nomeação de “onze novos ministros”. A única exceção que é elogiada é o ministro Luiz Fux, a quem o deputado diz respeitar o conhecimento jurídico, mas mesmo o presidente da Corte é incluído nas críticas generalizadas aos integrantes do Tribunal, chamados de “ignóbeis”.

“Fachin, um conselho pra você. Vai lá e prende o Villas Bôas, rapidão, só pra gente ver um negocinho, se tu não tem coragem. Porque tu não tem culhão pra isso, principalmente o Barroso, que não tem mesmo. Na verdade ele gosta do culhão roxo”, continuou o deputado. “Gilmar Mendes… Barroso, o que é que ele gosta. Culhão roxo. Mas não tem culhão roxo. Fachin, covarde. Gilmar Mendes… (o deputado faz gesto simulando dinheiro) é isso que tu gosta né, Gilmarzão? A gente sabe.”

Silveira também afirma na gravação que já imaginou o ministro Fachin “levando uma surra”, assim como “todos os integrantes dessa Corte aí”.

“O que você vai falar? Que eu tô fomentando a violência? Não, só imaginei. Ainda que eu premeditasse, ainda assim não seria crime, você sabe que não seria crime. Qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada nessa sua cara com um gato morto até ele miar, de preferência após a refeição, não é crime”, afirmou. “Na minha opinião, vocês já deveriam ter sido destituídos do posto de vocês e uma nova nomeação convocada e feita de onze novos ministros. Vocês nunca mereceram estar aí. E vários que já passaram também não mereceram. Vocês são intragáveis.”, concluiu o deputado.

Daniel Silveira sorri em viatura da PF após ser preso no RJ – Foto: Aline Massuca / Metrópoles

Embora todas as polêmicas da Lei de Segurança Nacional, existe um certo consenso jurídico nos últimos 15 ou mais anos, de que uma nova lei é necessária. Até onde a LSN pode ser interpretada como uma ameaça à democracia. Daniel Silveira foi apenas um deputado bobalhão, que para ganhar alguns likes falou besteira e acabou sofrendo as rédeas da lei.

Mas como há uma ampla interpretação dessa mesma legislação, a opinião se divide.

Badaró concorda. “Vejo com profundo pesar que vivamos uma situação em que se pense que o instrumento jurídico para resolver um problema seja essa lei que é resquício da ditadura. Se as instituições funcionassem dentro de uma normalidade democrática, isso sequer seria cogitado.”

Redação com BBC Brasil

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